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A Forma da Água | Crítica

A Forma da Água (The Shape of Water)
Elenco: Sally Hawkins, Michael Shannon, Doug Jones, Octavia Spencer, Richard Jenkins
Direção: Guillermo Del Toro
Estreia: 1 de fevereiro de 2018 (Brasil)

★★★★★

 “Incapaz de perceber a Tua forma, Te encontro ao meu redor. Tua presença preenche meus olhos com Teu amor. Humilha meu coração, porque Tu estás em todo lugar...”

Segundo o dicionário, “forma” é a configuração física dos seres e das coisas, como decorrência da estruturação das suas partes. O que Guillermo Del Toro (“Hellboy”) aborda neste filme é uma nova percepção de relações amorosas, comunicação e até mesmo uma perspectiva espiritual. “A Forma da Água” é o melhor trabalho de Del Toro até hoje, e mostra um diretor consciente da sua imaginação, que entende o gênero e transcende a barreira da linguagem numa obra sensível.

O “filme de monstro” é quase que um sub-gênero estabelecido ao longo da história do cinema, que pode transitar desde filmes de horror como “Frankenstein” até as animações infantis como “A Bela e a Fera”. E Del Toro conseguiu fazer de A Forma da Água não apenas uma história única e intimista, mas também evocativa dos clássicos do cinema ao passo que avança na linguagem cinematográfica para estabelecer sua marca pessoal no filme. Uma marca dessa maturidade do diretor é a capacidade de abordar, por exemplo, a metalinguagem, através de elementos do roteiro e um cuidadoso processo de convergência cinematográfica através de cores e do design de produção. O próprio cinema tem seu lugar na história e faz dele elemento participativo da relação entre criatura e humano, como na cena onde a água começa a cair no cinema do andar de baixo.

Sally Hawkins
(“Blue Jasmine”), no papel de Elisa Esposito, entrega uma atuação que cativa pela sua capacidade singular de poder expressar e irradiar sentimentos e palavras além da língua internacional de sinais. Sua postura, seus olhos, sempre revelam algo que suas mãos não estão dizendo. E poucas atrizes poderiam ter atuado de maneira tão singela, discreta e poderosa quanto Hawkins. Seu vizinho de prédio é Giles, interpretado por Richard Jenkins (“O Visitante”), um artista que passa por um processo de autoconhecimento ao longo da história. Octavia Spencer (“Estrelas Além do Tempo”) é Zelda, amiga de Elisa, que não tem profundidade nenhuma para a história, mas cumpre sua função narrativa. O grande vilão é interpretado por Michael Shannon (“Animais Noturnos”), no papel do homem do governo chamado Richard Strickland. Shannon não abusa das caras e bocas, mas embora mais contido do que em outros papéis, aqui ele faz de sua presença uma ameaça real.

À parte do resto do elenco, porém ainda com uma participação que captura a essência do filme, temos Doug Jones (“O Labirinto do Fauno”) como o monstro. Por baixo de toda a maquiagem e roupa necessária para ajudar a dar vida à criatura (outra parte foi criado com ajuda dos efeitos especiais), Jones demonstra sensibilidade e um sentimento de cuidado, de proteção à quem ele ama. E amor é a palavra certa. E por palavras, nesse filme, devemos entender ação. Gestos e expressões não-verbais carregam toda a carga emocional e subjetiva do filme. As atuações, aliadas da graciosidade e organicidade das belíssimas composições de cena, juntas da fotografia que acerta a luz e as cores, criam no espectador o sentimentalismo dos personagens.

E a cor é um elemento importante nesse filme, saiba disso. Há muitos tons esverdeados representando o futuro e o que há fora do mundo de Elisa, azuis que imprimem a sensação de estar embaixo d’água e alguns momentos o vermelho. O diretor de fotografia Dan Laustsen (que já trabalhou com Del Toro em “A Colina Escarlate”) faz um ótimo trabalho ao tratar nuances e grandes aspectos que ajudam a construção narrativa. Um exemplo é o carro de Strickland, que usa elementos da cinematografia e do roteiro para estabelecer seu personagem como o vilão. Também merece destaque a trilha sonora original indicada ao Oscar de Alexandre Desplat (compositor de “O Discurso do Rei” e “Argo”), que realça e completa as cenas, preenche espaços onde não há voz e serve de fio para conduzir toda a construção objetiva do relacionamento de Elisa com o monstro. Algumas surpresas na parte musical do filme são bem agradáveis e imprevisíveis.

Se o relacionamento com o monstro é uma metáfora, então dele podemos desprender interpretações variadas, e a narrativa permite isso. A beleza, a simplicidade e a humildade de uma relação onde não há padrões estabelecidos pela sociedade ou sequer atração física convencional são reflexos de muito mais do que um relacionamento amoroso. A própria figura da divindade que é a criatura, como descrita por Strickland, refere-se a essa proximidade metafísica tangível e irresistível aos olhos de quem é diferente de todos. O fato de Elisa ser muda, mas conseguir ouvir perfeitamente, é justamente o contrário do que apontamos como falhas do ser humano atual: ouvir pouco e falar muito. Isso constrói essa ponte entre os dois e faz com que a personagem principal se deixe levar por essa proximidade espiritual com o monstro, resultando em belas cenas de entrega total de Elisa ao que ela encontrou na figura da criatura.

“A Forma da Água” é a joia da criação de Del Toro. Seu trabalho mais maduro até o presente momento, mas que não brilha sozinho. Traz consigo toda a genialidade que o diretor imprimiu em trabalhos anteriores, somada a belíssimos elementos cinematográficos. Há complexidade (sem ser pretensioso), humildade, beleza, e uma narrativa que é velha conhecida de Hollywood, mas contada através da mente de um dos melhores diretores dessa geração.

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